MAGAZINE CASASHOPPING
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Mesa arrumada, ao fundo o português Antonio Zambujo
cantando Chico Buarque – nada podia dar errado com um
cenário destes. E não deu – exceto pelo excesso de opções,
cujas sobras foram guardadas para o café da manhã, a noi-
te transcorreu como devia, suave, sem tempo para acabar.
Eu hoje penso nos jantares com menos pompa e compli-
cação, finalmente segui os ensinamentos de minha musa
literária M. F. K. Fisher, que louvava a sofisticação contida
em poucos elementos e muitos sentimentos. Mas – sempre
tem um “mas” –, nem sempre fui assim.
Já fui um arrogante culinário. Daqueles que querem ouvir
um esgar de espanto dos comensais frente a um prato
superlativamente construído. E lembrei-me de um jantar
onde os erros foram se acumulando à medida de minha
pretensão. Tinha chegado em casa, também era um jantar
para dois, queria impressionar meu convidado, e não tinha
almoçado ainda – o que foi o primeiro erro. Tomei duas ou
três ou quatro doses de vodca gelada enquanto iniciava a
preparação do jantar: salada de folhas com vieiras mor-
nas e vinagrete de lima, depois uma polenta com ragu de
cogumelos, depois um risoto de camarões e, no final, figos
assados com redução de vinho do porto, queijo manchego
e uma farofa de frutas secas.
O teor alcoólico do cozinheiro, porém, subitamen-
te se manifestou quando, num momento de fúria
culinária, comecei a picar as ervas do risoto como um
samurai frente a uma horda de bandidos – era faca
para cá, faca para lá, ervas pulando na tábua e, repen-
tinamente, meu dedo tinha perdido parte da ponta.
O sangue espirrava na bancada, eu zonzo do álcool
e da automutilação, e perdi preciosos minutos até
pensar em amarrar um pano no dedo. Neste ínterim,
a polenta começou a grudar no fundo da panela, e os
cogumelos secaram. Corro para o banheiro, enrolo o
dedo no que mais parecia um turbante para o dedo
do que um curativo, e volto para a cozinha para ver
que saía fumaça do forno, eram os figos – quero dizer,
o que sobrara deles, parecia que tinham sido vítimas
de algum piromaníaco, estavam pretos, esturricados.
Assim como também estava meio esturricada a pré-
-preparação do risoto – eu tinha refogado o arroz,
colocado o vinho branco, mexido e esquecido ligado,
com o suceder de acontecimentos.
Conclusão: tinha um arroz ligeiramente marrom, com
um cheiro característico de queimado. Tentei recuperá-
-lo colocando o caldo feito com as cascas do camarão,
enquanto mexia a panela da polenta e pensava o que
servir como sobremesa, pois os figos estavam fora de
cogitação. Estava já completamente sóbrio, articulan-
do mil ideias para salvar aquela catástrofe, quando
olho para as seis vieiras boiando em um caldo rosado
estranho. Fiquei olhando, assustado. O caldo era vod-
ca pura, pois a garrafa caíra sobre a tigela onde elas
repousavam, e elas estavam quase cozidas em vodca
gelada. Mas o que era aquele rosado? Eu comecei a
analisar e – espanto! Tinha gotas de sangue na borda
da tigelinha! Eu estava criando uma nova e autoral,
bastante autoral receita: vieiras ao molho pardo tipo O
negativo com vodca...
Claro que não daria certo. A essa altura, eu já tinha feito
o balanço da catástrofe: não tinha sobremesa e a salada
não teria vieiras. Coloquei o queijo da sobremesa na sa-
lada, ficaria razoável. Coloquei o porto, ainda não total-
mente reduzido, para salvar os cogumelos esturricados.
Fui misturando os ingredientes de cada prato, para tentar
salvar aquele momento.
Conclusão: meu convidado chegou, e a mesa não
estava posta, eu tinha um dedo enrolado em uma gaze
manchada de sangue, servi uma salada sem graça, uma
polenta seca com um ragu de cogumelos doce, um risoto
com o indefectível sabor e aroma de queimado, e só me
restou beber para tentar parecer
cool
, o que definitiva-
mente não adiantou nada. A noite foi como o jantar –
um pequeno suceder de desacertos, para terminar num
constrangedor
gran finale
.
Portanto, caro leitor que gosta de cozinhar e receber,
ouça este conselho de um jovem senhor versado nas artes
da cozinha e do receber: lembremos sempre do mestre,
less is more
. Menos pretensão, mais resultado. Menos cére-
bro, mais sentimento. Menos intenções, mais sugestões. E
nunca tome duas ou três ou quatro doses de vodca com o
estômago vazio antes de preparar um jantar – garanto, não
é uma boa ideia.
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